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Desde o seu início em 2007, este blog evoluiu
e hoje, quase exclusivamente,
ocupa-se com a reflexão sobre a vida de um homossexual,
no contexto de sua fé católica.



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29 de dezembro de 2013

Sagrada Família


O domingo dentro da Oitava do Natal (e quando não há um domingo nesse período, é no dia 30 de dezembro), a Igreja celebra a festa da Sagrada Família. Os pregadores, em sua grande maioria, dedicam seus discursos à família contemporânea e destacam "as ameaças" sofridas por essa instituição que em si - sem dúvida - é um belíssimo projeto de Deus. Um dos equívocos mais frequentes é - digamos - a invertida direção do pensamento, ou seja: partindo do modelo (de família) considerado hoje "moralmente correto", tentam esticar a interpretação do mistério da criação, mencionando de passagem a Sagrada Família de Jesus Maria e José. É muito fácil deixar-se levar pelo tal discurso, porque os pregadores - além de tocarem no assunto que "mexe com qualquer um", misturam as afirmações certas com erradas e montam uma imagem que parece ser absolutamente perfeita. E de fato a visão é admirável... Mais ou menos como a de uma árvore de Natal. Ela nos comove e fascina, a ponto de esquecermos de que tanto a própria árvore, quanto o seu brilho, é tudo artificial. Estamos assim, igualmente, colocados diante de uma imagem artificial da família.

Vamos aos detalhes. O ponto de partida (do discurso) é uma família "perfeita" (dentro dos padrões ideológicos de hoje), isto é, formada pelo casal heterossexual, seus (não poucos) filhos e, talvez, os avós e alguns demais personagens. O casal, obrigatoriamente unido através do Sacramento do Matrimônio, permanece em maior fidelidade conjugal, aplica apenas os métodos naturais durante cada ato sexual e, quando chegar a hora, educa rigorosamente os filhos, inclusive sobre a "autêntica" sexualidade humana.

Esse ponto de partida para uma viagem bíblico-histórica ignora o fato de que ainda algumas décadas atrás, sob a bênção apostólica da Igreja, os pais escolhiam os maridos para suas filhas e os homens tratavam as suas mulheres como escravas (aliás, a própria escravidão, em seu sentido cruelmente literal, também possuía a mesma bênção). As pregações frisam a lei natural, da qual a única exceção é algum fato sobrenatural, bem como no caso de Maria Santíssima que ficou grávida antes de se casar com o seu castíssimo esposo, São José. O mesmo caso sobrenatural justifica a total ausência de procriação na Sagrada Família. Ainda assim, é exatamente essa Família de Nazaré (e de Belém) que está sendo apresentada como modelo de todas as famílias. Ou seja, as famílias que começam a sua existência no momento das núpcias e somente assim autorizadas por Deus para iniciarem a sua colaboração com Ele na geração de novas vidas, têm o seu modelo no (Santo) casal que teve a história particularmente diferente...

Talvez os próprios pregadores tenham percebido os pontos fracos dessa argumentação e por isso recorrem imediatamente ao fundamento de todas as coisas, isto e, à criação do ser humano, ou melhor, à formação do primeiro casal e à ordem de "povoarem a terra" através da procriação (literalmente, a "multiplicação"). Aí começa a "matança dos coelhos". E não são apenas dois com uma só cajadada. Na verdade, são muitos. O texto bíblico sobre Adão e Eva serve tanto para condenar o divórcio, quanto a monogamia e, principalmente "o homossexualismo" (sic!). Afinal, como diz a "sabedoria" popular, Deus criou Adão e Eva e não Adão e Ivo (sic! sic!)... Enfim, o discurso termina com a conclusão de que a ordem da criação, ferida pelo pecado, foi restaurada pelo fato do nascimento do Filho de Deus no seio de uma família...

Espero que, ao menos alguns pregadores, tenham o tempo de mencionar que Deus é amor e que - principalmente neste sentido - todos fomos criados à sua imagem e semelhança.

Quanto à criação, eu particularmente, vejo ali um princípio diferente que não tem nada a ver com a heterossexualidade. Basta ler o texto com atenção e sem "esticá-lo" ao tamanho do próprio preconceito. Vale lembrar de que não estamos diante de uma reportagem, mas recebemos de Deus, em forma alegórica (ou poética) a revelação sobre o mistério da nossa existência. Refiro-me, neste caso, ao texto do Livro do Gênesis, capítulo 2, versículos de 18 a 24, tendo como o "texto auxiliar" o Gn 1, 24-31, ou melhor, os dois primeiros capítulos inteiros. 

Em primeiro lugar, Deus revela que criou o ser humano à sua imagem e semelhança (Gn 1, 26-27). Em seguida (eu diria, em consequência disso), Ele mesmo afirma que "não é bom que o homem esteja só" e logo encontra a solução: "vou dar-lhe uma ajuda que lhe seja adequada" (Gn 2, 18). Os detalhes a seguir considero muito importantes para ter uma conclusão correta e não criar as ideologias baseadas em qualquer tipo de fobias...

Acho belíssima a cena em que Deus leva ao homem todos os animais e este lhes dá o nome. De um lado parece ser um tribunal no qual o homem é o juiz, mas ao mesmo tempo, sem perceber, o próprio homem está sendo avaliado por Deus. Desde o início o ser humano é convidado para ser um parceiro ou colaborador de Deus. Desde então, o homem tem a prerrogativa de dar o nome a todas as coisas. Isso é magnífico. Pelo menos no início (sabemos quanto mal pode fazer o ato de atribuir o nome, ou o rótulo, às coisas e às pessoas!).

O próximo passo do Criador é misterioso. Então o Senhor Deus mandou ao homem um profundo sono; e enquanto ele dormia, tomou-lhe uma costela e fechou com carne o seu lugar. E da costela que tinha tomado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher, e levou-a para junto do homem” (Gn 2, 21-22). A reação do homem, desta vez, é diferente: Eis agora aqui, disse o homem, o osso de meus ossos e a carne de minha carne; ela se chamará mulher, porque foi tomada do homem.” (Gn 2, 23), o que o autor bíblico conclui com a frase, citada inclusive por Jesus no Evangelho: "Por isso o homem deixa o seu pai e sua mãe para se unir à sua mulher; e já não são mais que uma só carne." (Gn 2, 24). Tudo parece óbvio. É o homem e a mulher. O que vem além disso, não pode ser de Deus... Será?

O contexto de toda aquela situação sugere que o homem se reconhece como tal e percebe a diferença entre a sua natureza e a dos animais. Ele é superior, é a questão de níveis diferentes. É nítido aqui o princípio do personalismo e não da heterossexualidade. Se Deus decidisse tomar a costela do homem para formar um outro homem, a resposta de Adão seria a mesma: Eis agora aqui o osso de meus ossos e a carne de minha carne". Digo mais: essa resposta seria ainda mais rápida e com firmeza ainda maior. É como se Adão dissesse: "A minha solidão só pode ser preenchida por um outro ser humano, mas qualquer animal, por mais simpático que seja e me faça companhia, não é capaz de me complementar por inteiro". O sentido da criação de seres humanos com sexos diferentes está, evidentemente, em uma das principais tarefas confiadas a eles pelo Criador, isto e, de povoar a terra (cf. Gn 1, 28). Porém, essa não é a única maneira de dar o sentido a existência do ser humano. Se fosse a única, as pessoas não fariam mais nada, além de procriar. Aliás, não existiria, também, o celibato...

Terminando a minha reflexão neste dia da Sagrada Família, quero repetir mais uma vez: nós, os homossexuais, somos imensamente gratos às nossas famílias (e à instituição familiar como tal). Afinal, sem a família (por mais imperfeita que tenha sido) nenhum de nós existiria. Outra coisa importante: pelo fato de não procriarmos em nossos relacionamentos homossexuais, não pretendemos destruir a família, enquanto a célula fundamental da sociedade e da Igreja. Muito pelo contrário. Desejamos acrescentar a nossa própria experiência de amor e com ela enriquecer a convivência pacífica e fraterna de toda sociedade e da Igreja. Além disso, o glorioso exemplo da Sagrada Família de Jesus, Maria e José, ensina-nos e inspira para não desanimarmos diante das incompreensões, ameaças e perigos que o mundo atual, cheio de fobias e fundamentalismos, nos oferece...

2 comentários:

  1. Querido amigo Teleny, suas palavras nos iluminam e nos inspiram. Você nos permite reproduzir seu texto em nosso blog, com os devidos créditos?
    Beijo carinhoso,
    Cris
    Equipe Diversidade Católica

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    Respostas
    1. Obrigado pelo carinho. Para mim é uma honra serem lidos e reproduzidos os meus textos. A Equipe Diversidade Católica tem o direito total e permanente para utilizar (inclusive corrigir!) o material daqui. Grande abraço e FELIZ 2014!

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