ESTE BLOG NÃO POSSUI CONTEÚDO PORNOGRÁFICO

Desde o seu início em 2007, este blog evoluiu
e hoje, quase exclusivamente,
ocupa-se com a reflexão sobre a vida de um homossexual,
no contexto de sua fé católica.



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28 de maio de 2014

Uma bela tentativa, mas...


A homossexualidade continua despertando grandes polêmicas em todos os campos, desde o religioso, pelo moral, social e cinematográfico, até o político. Enquanto a reflexão não sai da pura teoria, os efeitos de tal discussão - além de elevar a temperatura do discurso - geralmente permanecem na mesma dimensão, quer dizer, na teoria. Eu sempre senti  falta de uma voz nestas polêmicas. A voz essencial e mas preciosa: de próprias pessoas homossexuais que não se limitariam ao que "está escrito na Bíblia" ou ao que "dizem as estatísticas", mas compartilhariam a sua experiência pessoal. Foi por isso que fiquei tão feliz, quando o Papa Francisco, em sua entrevista à revista "La Civiltá Cattolica", no ano passado, disse: "Deus, quando olha a uma pessoa homossexual, aprova a sua existência com afeto ou rejeita-a, condenando-a? É necessário sempre considerar a pessoa. Aqui entramos no mistério do homem". [Leia mais aqui

Pois bem... A quem "eles" irão querer escutar? Um(a) homossexual que se sente feliz, ao realizar o maior sonho de sua vida, tendo vivido em um relacionamento duradouro e feliz? Certamente não, pois o objetivo "deles" é encontrar mais um pau para bater no cachorro. A meta aqui, por mais que pareça ser, não é um diálogo, nem qualquer tentativa de conhecer objetivamente o "nosso" lado. Quando se parte daquela predominante repulsa à homossexualidade (leia-se: a homofobia), nenhum diálogo é possível, tampouco qualquer conhecimento objetivo.

Achei necessária esta introdução à leitura de uma entrevista, publicada recentemente no portal "Alateia" e intitulada "Ser homossexual é um sofrimento, não uma escolha nem um pecado em si". O entrevistado é Philippe Ariño, homossexual espanhol de 34 anos, que mora atualmente na França.

Nesta entrevista (e também em outra, ao portal "Zenit" - aqui), Philippe faz uma apologia à continência sexual, o que, em si, até parece louvável. Como o seu argumento, porém, usa o exemplo das próprias frustrações nos relacionamentos homossexuais do passado: "Ao me relacionar com outros homens ou olhar para eles de maneira possessiva, eu sentia satisfação no momento. Mas estava sozinho e nunca me sentia completo. É então que caímos na tentação de achar que podemos viver a sexualidade como os outros, mas, na verdade, a sexualidade só pode ser vivida na diferença sexual".

A mesma frustração pessoal do rapaz aparece ainda mais claramente em seguida: "Antes eu me sentia sempre inferior aos homens, porque a homossexualidade é invejosa. Agora, após descobrir que Deus me ama e que sou seu filho, querido e amado, não me sinto inferior a nenhum homem. Assim, depois de muitos anos, descobri a beleza da amizade masculina, que eu não trocaria pelas relações do passado - quando eu fingia estar me realizando".

Sem dúvida, para quem nunca experimentou o amor em sua relação homossexual, não é tão difícil preferir a amizade e não querer trocá-la pelas relações frustradas do passado. A lógica das afirmações acima lembram-me muito aqueles testemunhos fervorosos de ex-católicos que "encontraram Jesus" em uma comunidade evangélica e se tornaram fiéis devotos (não raramente fanáticos), só porque - devido à própria ignorância e à preguiça - no passado viviam como "católicos de carteirinha". Nada mais fácil do que transferir aos outros a culpa pelos próprios defeitos pessoais...

A frustração do passado é uma geradora de desprezo em relação a todos que, numa realidade semelhante, conseguiram ser felizes. O texto da entrevista traz a pergunta (associada a uma imposição): "Pessoas como você, que abandonam seu passado, não são muito queridas pela comunidade LGBT. Como você se relaciona com o universo que frequentava?". A resposta revela o real objetivo da entrevista "politicamente correta":

"Eles me colocaram na lista negra. Ficam me ameaçando [sic!] e me etiquetam de homofóbico, mas eu não teria sobrevivido junto deles: é um mundo de mentiras, que exteriormente se mostra alegre, mas dentro está cheio de raiva e tristeza. (...) Os ativistas podem aplaudir quando você fala, mas você só é visto em sua sexualidade, como se fosse um animal [sic!] ou um indivíduo de série B que precisa ter direitos especiais. É por isso que eu digo que somos os piores inimigos de nós mesmos".

Quem quiser, leia o texto inteiro da entrevista. Entre outros assuntos, há indiretas à adoção das crianças pelos casais homoafetivos, junto com a crítica do casamento entre as pessoas do mesmo sexo e, finalmente, a "definição" do relacionamento homossexual como "uma amizade ambígua, incapaz de amor, da qual só deriva o sofrimento".

Uma analogia simples que me vem à mente é com alguém que, por algum motivo, nunca aprendeu a nadar (ou a andar de bicicleta) e agora cria uma "definição" daquilo, como algo terrível, impossível, prejudicial e, certamente, antinatural. Isso acontece sempre quando se procura colocar as próprias frustrações pessoais como uma base do discurso.

Enfim, Philippe Ariño, por mais que se apresente como um homossexual e católico, não me representa...

16 de maio de 2014

Onde está o Demônio?


É um saco viver numa época em que a menor notícia boa tem que ser ofuscada pelos fanáticos da Igreja Católica Apostólica Furiosa. Coitados, não sabem (porque não consta na Bíblia) que a mentira - à qual com tanta frequência recorrem - tem pernas curtas e ainda é a obra do Demônio (isso sim, eles devem saber, pois consta na Bíblia: Jo 8, 44). Vamos, porém, aos poucos, seguindo a ordem das coisas...

1. A NOTÍCIA BOA
No último dia 6 de maio (terça-feira), o Papa Francisco teve como um dos concelebrantes da Santa Missa na capela da Casa de Santa Marta, o Padre Michele De Paolis (salesiano italiano, nascido em 09 de março de 1921), um dos fundadores da Comunidade "Emmaus" (1978) e, segundo algumas fontes, cofundador do grupo  italiano AGEDO (associação de amigos, parentes e pais de pessoas homossexuais e transexuais, fundada em 1992 na cidade de Milão [breve história em italiano, aqui]). O próprio Padre Michele assim relata o encontro [fonte, em italiano - o texto traduzido graças aos recursos da tecnologia]: 

Eu concelebrei com o Papa Francisco. Li o Evangelho. Após a celebração, o Papa recebeu os presentes em outra sala. Eu e o meu companheiro fomos os últimos. Em apenas alguns minutos - muito intensos - eu falava de "pedras rejeitadas", com as quais convivo. Entreguei ao Papa alguns presentes (um crucifixo, um cálice com a patena em madeira de oliveira, belíssimos) e falei sobre as nossas iniciativas em andamento, relacionadas aos imigrantes de Lampedusa. O Papa ficou muito feliz. Eu disse ao Papa: "Nós adoraríamos ser recebidos em uma audiência com o pessoal da [Comunidade] Emmaus! É possível?" Ele respondeu: "Tudo é possível! Converse com o Cardeal Maradiaga e combine tudo com ele". Em seguida, ele beijou a minha mão! Eu o abracei e chorei... 

A informação sobre o encontro do Padre Michele com o Papa Francisco foi publicada na página "Católicos LGBT's" no facebook. A mesma página cita o trecho de um artigo do Padre Michele De Paolis, escrito para um grupo LGBT de Lecce (Itália):

Aqueles que desejam transformá-los em 'heterossexuais', por assim dizer, estarão forçando-os a agir contra a sua natureza e tornando-os psicopatas infelizes. Precisamos colocar em nossas cabeças que Deus, nosso Pai, quer que nós, suas crianças, sejamos felizes e frutifiquemos com os dons que Ele colocou em nossa natureza! (...) Vocês têm o direito de procurar um parceiro. E não se preocupem: onde existe o ágape, existe Deus. Vivam a sua vida com alegria. E com a nossa mãe Igreja precisamos ter paciência. A atitude da Igreja com os homossexuais mudará. Neste sentido, inúmeras iniciativas já foram empenhadas. 

2. A NOTÍCIA RUIM
A "fumaça de Satanás", isto é, a repercussão na "mídia católica [furiosa]" foi abundante. As aspas referem-se tanto ao termo "mídia" (pois trata-se de portais, páginas etc. - nada que seja um veículo oficial da Igreja, enquanto instituição), quanto à palavra "católica" (porque, no momento em que o autor questiona a legitimidade do ministério petrino do Papa Francisco, de fato, deixa de ser católico).

A notícia sobre o encontro do Padre Michele De Paolis com o Papa Francisco foi repetida pelos blogueiros (ditos) católicos e - como de costume - distorcida. 

Um blog de Portugal, "perspectivas", assinado por Orlando Braga, abre mão de sua "catolicidade" ao dizer (aqui): 

A quem "o papa" beija as mãos? Na foto, vemos o cardeal Bergoglio, também conhecido por "papa Francisco", a beijar as mãos de Michele de Paolis, um clérigo salesiano de 93 anos. (...) O beija-mão aconteceu no passado dia 6 de Maio depois de uma missa em Santa-Marta. O dito "papa" convidou Michele de Paolis para ler o Evangelho do dia. Depois da missa, o "papa" inclinou-se profundamente perante ele e beijou-lhe as mãos. (...) Estará o leitor a imaginar o "papa" a beijar as mãos a um franciscano da Imaculada, ou a um qualquer membro da SSPX [Associação de São Pio X - veja aqui]? Se imagina, desiluda-se! O "papa" só demonstra a sua infinita humildade e beija as mãos a quem defende o "casamento" gay, o "casamento" gay entre sacerdotes da Igreja Católica [sic!], a legalização da pedofilia e da eutanásia [sic! sic!]. É desta gente que o "papa" gosta.

A verdadeira cusparada de desprezo (baseada em uma série de equívocos) encontrei na página "Rainha Maria" (olha o nome!). O autor do texto, Dilson Kutscher, publica uma foto e escreve a seguir:



Quando o demônio faz homilia em missa concelebrada pelo Pontífice no Vaticano [é o título da matéria]. (...) Padre Michele que apoia a ordenação de mulheres, o casamento gay, o fim do celibato, faz homilia em missa concelebrada pelo Pontífice (que festa para Satanás ver aquele que se diz servo de Cristo apoiar tais coisas e ainda fazer homilia numa missa concelebrada por um papa em pleno Vaticano). Dom [quer dizer, Padre] Michele concelebrou com o Papa argentino e pregou, como mostra a imagem acima, a homilia na Casa Santa Marta. Pelo visto, o Papa Francisco, ao permitir que este padre apóstata modernista, concelebre junto com ele e ainda faça a homilia, deve concordar em seu coração, com as mesmas posições apóstatas modernistas deste padre. Francisco concelebrando com este padre e permitindo que o mesmo faça a homilia, passa de forma sutil e indireta, uma mensagem de apoio à ordenação das mulheres, ao casamento gay e ao fim do celibato (as vezes os atos demonstram mais do que palavras escritas em documentos, declarações etc.).

Talvez não seja suficiente citar, mais uma vez, o relato do próprio Padre Michele que disse: "Li o Evangelho", nem mesmo a afirmação do citado acima esquisitão que, mesmo tratando o Papa de cardeal Bergoglio, também conhecido por 'papa Francisco', escreveu que o Padre foi convidado pelo Papa para ler o Evangelho do dia. Recorrendo a mais uma fonte, o portal "Especial sobre o Papa" da Comunidade Católica "Canção Nova", encontramos [AQUI] o texto da homilia proferida pelo próprio Santo Padre no dia 06 de maio na capela da Casa da Santa Marta no Vaticano. Logo, dizer que "o demônio faz homilia em missa concelebrada pelo Pontífice", é a prova não apenas de uma total incompetência jornalística, mas, antes de tudo, o sinal claro da falta de boa vontade e de compromisso com a verdade.

O mesmo ponto de vista, privado de boa vontade e baseado na mentira, encontramos em outras páginas na internet, por exemplo:

"blogonicus": "Papa Francisco beija a mão de sacerdote anti-clerical (sic!) e gayzista". Aqui, o autor (Danilo) reproduz a matéria (e as inverdades) da página "Rainha Maria", acrescentando apenas o neologismo "gayzista" (criado provavelmente por Olavo de Carvalho e repetido pelo Padre Paulo Ricardo). A mesma matéria foi reproduzida pela página "Sinais do Reino" (de uma autoria desconhecida).

O portal "Fratres in unum", além de repudiar o encontro do Papa com o Padre Michele (e ironizar, especialmente a atitude do Santo Padre de beijar a mão do sacerdote), presta, de fato, um serviço à verdade, citando algumas frases do Padre Michele (sem mencionar as fontes):

Estou espantado com o fato de que muitos homens da Igreja (...) ignoram completamente o fenômeno da homossexualidade, que a ciência já esclareceu de modo inequívoco: a orientação homossexual não é escolhida livremente pela pessoa. O rapaz e a moça se descobrem dessa maneira: trata-se de uma abordagem profundamente enraizada na personalidade, que constitui um aspecto essencial da própria identidade: não é uma doença, não é uma perversão. O rapaz ou a moça homossexual podem dizer a Deus: "Você nos fez assim!". 

Algumas pessoas de Igreja dizem: "Tudo bem ser homossexual, mas não deve ter relações sexuais, não podem amar uns aos outros!" Isso é a máxima hipocrisia. É como dizer a uma planta que cresce: "Você não deve florescer, não deve dar frutos!". Isso sim é contra a natureza.

Confesso a vocês que no começo eu também tinha meus preconceitos. Então, estudei e consegui. Sucessivamente tentei entrar na lógica do Evangelho; eu queria olhar para as coisas da parte de Deus. Entendo que o Pai não exclui do seu amor nenhum de seus filhos e não julga a pessoa com base em seus impulsos sexuais, que são atribuições da natureza e não de uma escolha voluntária.

1 de maio de 2014

Novidades...


Realmente, abandonei um pouco este blog. Sinceramente, todo esse papo sobre a busca de diálogo entre o "mundo LGBT" e o "mundo católico", já conseguiu encher o meu saco (desculpem pela expressão!), embora tenha sido eu mesmo quem se comprometeu com esse assunto. A minha ausência - só para não ser totalmente injusto comigo mesmo - surgiu também devido às buscas em outras áreas, digamos, profissionais que, graças a Deus, ocupam uma parte do meu tempo (e da minha mente). Talvez, um dia, escreva sobre isso por aqui. 

Isso foi uma tentativa de justificar a escassez das novas postagens no blog. E peço desculpas aos (eventuais) Leitores que, mesmo assim, procuram as novidades aqui. Eu realmente fico muito feliz com a presença e atenção de cada Leitor  que o meu "contador de visitas" consiga detectar...

Um tanto desanimado distraído, encontrei hoje uma notícia interessante que gostaria de reproduzir aqui. Antes, queria dizer que percebo a diferença entre as opiniões pessoais de quem quer que seja (e por mais "católicas" que pareçam ser) e uma declaração oficial da Igreja, ou de uma instituição direta e legalmente ligada à Igreja. Ainda que as mais azedas declarações de um Padre Ricardo da vida tenham a grande influência na formação de mentes fanáticas de certos católicos, evidentemente, uma declaração clara (diria: feita com todas as letras) de uma instituição da Igreja católica tem - para mim - o peso e a importância muito maiores. E quando tal declaração é, finalmente, positiva e sensata, não posso não enxergar aqui um sinal de esperança dos tempos melhores. 

Estou falando de uma nota oficial da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, publicada no perfil oficial da mesma no facebook (aqui) e divulgada, também, pelo portal 'brasilpost'.

Parabenizo os membros da Comissão Justiça e Paz pela coragem e clareza de sua declaração!

Eis a nota:

Nota da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo

Fiel à sua missão de anunciar e defender os valores evangélicos e civilizatórios dos Direitos Humanos, a Comissão Justiça e Paz de São Paulo (CJPSP) vem a público manifestar-se por ocasião da 18ª Parada do Orgulho LGBT que se realiza na Av. Paulista no próximo domingo, dia 04 de maio de 2014.

Nosso posicionamento se fundamenta na Constituição Pastoral Gaudium et Spes, aprovada pelo Concílio Vaticano II, que diz: “As alegrias e esperanças, as tristezas e angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrais e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração.”

Assim, a defesa da dignidade, da cidadania e da segurança das pessoas LGBT – lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais – é imprescindível para a construção de uma sociedade fraterna e justa. Por isso não podemos nos calar diante da realidade vivenciada por esta população, que é alvo do preconceito e vítima da violação sistemática de seus Direitos Fundamentais tais como a saúde, a educação, o trabalho, a moradia, a cultura, entre outros. Além disso, enfrentam diariamente insuportável violência verbal e física, culminando em assassinatos, que são verdadeiros crimes de ódio.

Diante disso, convidamos as pessoas de boa vontade e, em particular, a todos os cristãos, a refletirem sobre essa realidade profundamente injusta das pessoas LGBT e a se empenharem ativamente na sua superação, guiados pelo supremo princípio da dignidade humana.


São Paulo, 30 de abril de 2014.

16 de abril de 2014

Paradigmas, preconceitos e novos céus

Reproduzo aqui o excelente texto de David Santos, do seu blog “Culto diferente”.


PARADIGMAS, PRECONCEITOS E NOVOS CÉUS


O preconceito é a atitude discriminatória, baseada em juízo preconcebido de algo ou alguém que fere diretamente um modelo estabelecido de mundo ideal e que outrora possa ter sido a solução para dada situação ou momento, mas que perdeu a relação com realidade. Logo o preconceito está diretamente ligado a paradigmas e à manutenção do status quo. Sendo assim, o preconceito nada mais é que a exteriorização violenta e amedrontada da nossa aversão a mudanças.

Há uma história bíblica que exemplifica bem a relação preconceito versus paradigma:

Samuel o profeta, foi designado por Deus para ungir um Rei para Israel, enviado a casa de Jessé, fez passar diante de si todos os filhos deste: Eram homens fortes, bonitos, inteligentes, capazes de conduzir o povo diante das guerras intermináveis com os cananeus; Aos olhos de todos, reis em potencial. Por fim, Samuel questiona se não havia nenhum outro filho, porque Deus não o havia tocado a respeito dos que tinha visto. Sim, havia mais um filho, este, sem muita importância ficou esquecido no campo junto às ovelhas que cuidava.

Davi era pequeno, magro, ligado às artes, poeta e músico, de coração sensível, estava mais para “bobo da corte” que para Rei. Mandaram chamá-lo, e quando este chegou a Samuel, Deus disse: Este é o Rei! [I Samuel 16]. Samuel então questiona a Deus, sobre o “absurdo” que estava fazendo, ao que recebe de resposta: “O Senhor não vê como o homem, o homem vê a aparência, mas o Senhor vê o coração”.

O que Samuel não percebeu é que Deus estava quebrando paradigmas e com isso o preconceito que havia no coração do profeta e do povo. Eles conheciam Saul, o atual Rei, que tinha tudo o que os reis dos povos vizinhos tinham, era o estereótipo de rei bem-sucedido, o modelo ideal, mas que representava um tempo passado, algo que para o atual momento era antiquado e impedia-os de ter experiências mais profundas com Deus.

E assim, Deus estava dizendo a Israel, “vamos mudar as coisas por aqui”, está na hora de viver coisas diferentes, experimentar o novo, façamos loucuras em favor da vida abundante, “a virgem dará luz a uma criança” e nunca mais o mundo será o mesmo. [Isaías 7:14; Isaías 43:19-21]

E no decorrer da história, podem-se observar várias outras situações parecidas, onde pela fé, homens e mulheres mudaram o status quo, quebrando paradigmas em favor da vida e construindo um novo mundo [Hebreus 11:32-40].

O próprio Jesus era exímio em quebrar paradigmas, em mudar a ordem das coisas, seu discurso era desafiador, dizia: “Ouviste o que foi dito, mas eu, porém vos digo (...)”, por isso sofreu preconceito por parte dos lideres religiosos da época, sendo perseguido e morto.

É evidente que todos nós temos preconceitos, em maior ou menor intensidade, vivemos envoltos em paradigmas. E quando o Apostolo Paulo nos exorta a não julgarmos, ele o faz tendo em mente todas as variáveis da vida, pois, nosso julgamento preconcebido, pode estar intoxicado por um paradigma, que nem ao menos temos a noção de que existe ou que esteja lá [Mateus 15: 19-20].

E como podemos estreitar nossos afetos e relacionamentos, se estivermos atormentados pelo preconceito?

O preconceito tem origem no medo, o medo produz tormento, e atormentados, teremos atitudes de defesa, agredindo o outro, agindo pela lei do “olho por olho e dente por dente”, logo, não seremos aperfeiçoados no amor [I João 4:18-21].

Quem tem preconceito com negros, é infeliz porque eles deixaram de ser escravos, acredita ainda que são pessoas inferiores e por isso devem ficar excluídos da sociedade. Os homens tem medo da emancipação das mulheres, temem que elas assumam o controle que eles acreditam possuir, assim, se tornam machistas, na ânsia de defender o seu lugar, diminuem, agridem, excluem. Temem que assegurando os direitos civis aos homossexuais, de forma sobrenatural, todos os héteros se transformem em gays, e assim, acabe a família, e toda a estrutura social que conhecemos hoje. E a lista não termina: estrangeiros, pessoas com deficiência, nativos de determinada região, gêneros musicais, lembra-se do rock a “música do diabo”, do axé, e do funk carioca, tão discriminado, hoje música de “elite”.

Também, entre os próprios cristãos: católicos, protestantes históricos, tradicionais, reformados, pentecostais, avivalistas, neopentecostais; todos a seu modo, temem a mudança do status quo, temem a ruptura com o paradigma que criaram, pois assim, podem perdem seu lugar de poder, perdem sua hegemonia.

Logo, precisamos de um novo discurso, sobretudo de uma nova práxis, para um novo tempo. Um discurso que reconhece que a verdade nunca foi absoluta, mas que dialoga com o tempo, cultura e experiências de vida.

E como conselho dado a crianças, exorto, tenha em ti o mesmo espírito que houve em Cristo, enfrente seus medos, enfrente seus preconceitos, quebre paradigmas, mude o estado das coisas: quebre o sábado, não apedreje mesmo que a lei ordene isso, fuja da hipocrisia de uma santidade fingida, para que o Reino seja estabelecido.

Este é o novo de Deus, novos relacionamentos, novos afetos. Não tema ser reconhecido como amigo dos pecadores, não tema ser reconhecido como cristão, até que haja novos céus e nova terra onde reine a justiça, a paz e a alegria.

Este texto foi escrito com base numa conversa realizada com os JBZL (Jovens Betesda Zona Leste), sobre o tema: "Só os preconceituosos herdarão o Reino de Deus" capítulo do livro de Elienai Cabral Junior - “E se alguém acender a Luz”.

11 de abril de 2014

Uma parábola cinematográfica


O filme "Heterofobia" é chocante. E "chocante", enquanto um termo, tem dois lados, assim como uma moeda. O filme é chocante de tão real. Um dos melhores métodos pedagógicos é fazer com que a pessoa se veja no lugar do outro. Somente assim tem a possibilidade real de conhecer e compreender o outro. O filme, de uma maneira inédita e nada banal, faz isso e alcança um nível que, lamentavelmente, muitos não alcançam. Basta ler os (mais de 2.500) comentários no facebook. É por isso, também, que o filme é chocante. Várias pessoas se manifestaram chocadas, a partir de uma perspectiva de quem não entendeu nada. Essas pessoas, certamente, nunca irão ler as obras de Kafka, nem apreciar a arte de Picasso, ou Salvador Dalí. O mesmo aconteceu com as parábolas de Jesus. Muitos não entenderam (e não entendem até hoje). Outros entenderam bem, mas foi por isso que o crucificaram... Recomendo o filme e continuo torcendo e orando que muitos consigam compreender a sua mensagem. E que surta efeitos!


29 de março de 2014

Um "honesto" desonesto

Foto [editada] do Portal
do Ministério Público Federal

Paulo Vasconcelos Jacobina é Procurador Regional da República, Membro do Ministério Público, Bacharel em Direito e Mestre em Direito Econômico. É também autor de várias publicações profissionais e... religiosas. Em uma entrevista, concedida em 2012 ao portal "Missão Eylon", Paulo conta um pouco da história de sua conversão ao catolicismo. A conversa foi realizada na ocasião do lançamento de um dos seus livros, "Cartas a Probo", apresentado como "uma conversa cristã cobre o espiritismo". O final da entrevista merece uma atenção especial:

- [representante não assinado do portal]: Por que "Cartas a Probo"? Qual o significado do nome Probo?

- [Paulo Vasconcelos Jacobina]: Probo significa honesto, leal, no sentido de que estas cartas representam uma busca honesta e leal da verdade: são dirigidas aos que estão buscando a verdade lealmente, mesmo que em caminhos diferentes dos nossos. São um verdadeiro voto de confiança no leitor: sejamos honestos, leais no caminho da busca, e certamente Deus não deixará de nos iluminar com a Sua verdade.

É difícil não ficar admirado com tamanha apologia da honestidade, uma virtude tão rara hoje em dia. Naturalmente, espera-se que todos os textos deste autor tenham a mesma marca. Infelizmente, a admiração inicial muda de conteúdo. Continua sendo uma admiração, mas o seu sentido é negativo, torna-se um espanto. A expectativa transforma-se em decepção. Basta ler o mais recente artigo de Paulo Vasconcelos Jacobina, publicado no portal católico de notícias "Zenit" (28 de março de 2014), "Criminalizar discordâncias majoritárias sob o rótulo de fobia não é democrático".

Ainda que consigamos engolir a sua argumentação sobre a democracia, bem como a comparação (tolerável, mesmo que distante) com a situação das minorias muçulmanas no ocidente, não há possibilidade alguma de considerar honesta a sua afirmação sobre as ambições dos ativistas de "certas minorias sexuais", no contexto da luta pelo Plano Nacional de Educação. A desonestidade consiste em atribuir a estes ativistas os objetivos que, de fato, não existem, denegrindo assim a sua imagem. Certamente, como um profissional de Direito, o Procurador Regional da República e membro do Ministério Público, o autor entende a natureza e o peso de calúnia, difamação e injúria. Eis a sua tese:

Para essa militância radical, não somente a prática do incitamento a crimes contra homossexuais é considerado como "homofobia", mas qualquer posicionamento público, de cunho filosófico, científico ou religioso que não parta dos mesmos pressupostos que as minorias sexuais usam para ver-se e interpretar-se. Afirmar a possibilidade de que um ser humano controle seus impulsos sexuais, ou mesmo um simples chamado à castidade, à fidelidade, à responsabilidade com a prole e com o outro, a valorização da abertura à vida na conduta sexual, em nome de religião ou de aperfeiçoamento moral, ficariam classificados como "fala de ódio", "homofobia" e "intolerância" a serem combatidos e criminalizados pelo Estado.

Isso não é verdade, caro Doutor Jacobina! Embora não faltem indivíduos promíscuos entre as pessoas homossexuais, assim como entre as heterossexuais, nós estamos falando sobre os seres humanos que levam a sério a sua vida e o seu compromisso com a sociedade. Muitos, inclusive, vivem séria e profundamente a sua relação com Deus e com a Igreja (apesar de toda falta de acolhimento por parte da comunidade eclesial). Embora, em outra parte de sua entrevista, o senhor tenha considerado "democrático (...) aguentar não somente a discordância e até avacalhação humorística que deve ser resolvida no campo de debates francos", não tem nada de franco criar a imagem de pessoas homossexuais e de seus movimentos como inimigos de castidade, fidelidade e responsabilidade, ou como criaturas bizarras, movidas apenas por seus incontroláveis impulsos sexuais. Ainda que a nossa "conduta sexual" não possua uma natural abertura à vida (no sentido do ato de procriação), nós não desvalorizamos a própria abertura à vida, nem as pessoas que receberam este dom. Graças a Deus e graças aos avanços de democracia, os casais homoafetivos, em um número cada vez maior, têm a alegria de adotar os filhos. Posso lhe assegurar de que a responsabilidade pela prole nestas famílias supera a realidade de muitos casais heterossexuais.

A distorção de uma realidade, só por falta de conhecimento, misturada com a autêntica fobia e com a "democrática avacalhação humorística", leva muitos fanáticos aos crimes de agressão verbal e física, não raramente ao homicídio. A discriminação das pessoas homossexuais, principalmente com a base das convicções religiosas, ainda é um triste fato que, apesar dos inquestionáveis avanços da verdadeira democracia que respeita os direitos humanos, é um câncer no tecido da sociedade. O que me entristece é que os que se apresentam como honestos e leais defensores da verdade (ainda em nome de Jesus), acabam recorrendo à desonestidade para que, através de sua eloquência e de seus títulos, implantar ainda mais intolerância naqueles que se deixam levar por este tipo de discursos.
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Observação: Paulo Vasconcelos Jacobina, em seus artigos publicados no portal católico de notícias "Zenit", dedica-se quase exclusivamente aos assuntos ligados a pessoas homossexuais. Provavelmente não será um exagero imaginar o grau de sua "honestidade" ao abordar tal temática:

25 de março de 2014

A orientação e os juristas


O portal da Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro divulgou uma nota sobre a reunião plenária da União dos Juristas Católicos do Rio de Janeiro - UJURCAT-RJ. O texto traz a conclusão daquela reunião plenária:

A União dos Juristas Católicos do Rio de Janeiro - UJURCAT-RJ em sua reunião plenária, realizada no dia 24 de março de 2014, com a presença de Sua Eminência Cardeal Dom Orani João Tempesta, digníssimo arcebispo metropolitano do Rio de Janeiro, aprovou por unanimidade posição contrária a inserção do termo 'gênero' e da expressão 'orientação sexual' como princípio e/ou diretriz do Plano Nacional de Educação - PNE. Trata-se de termo e de expressão carregados de ambiguidade e de ideologias, que não se prestam a definição de diretriz e de princípio. A propósito a referência à vedação de discriminação por motivo de sexo, prevista no Artigo 3°, inciso IV, da Constituição Federal, é adequada, consentânea e legítima e tem o apoio da UJURCAT.

Não pretendo entrar em discussão sobre o primeiro dos termos, isto é, 'gênero' que, de fato, precisa de uma definição mais clara ou, ao menos, mais conhecida para deixar de ser "um termo carregado de ambiguidade". A meu ver, o problema não é a falta de definição, mas a existência de muitas definições. Escrevi sobre uma delas neste blog (aqui).

O que me deixou curioso é a "posição contrária" dos juristas católicos do Rio em relação à expressão "orientação sexual". Se não for a orientação, então, é o que? A opção? Gostaria muito de crer que não seja isso o que queriam dizer os juristas católicos do Rio! Qual, então, é o problema em usar a expressão "orientação sexual", se ela aparece, também, em alguns documentos oficiais da própria Igreja? Existe, aliás, certa inconsequência na linguagem, digamos, institucional, da Igreja Católica.

Por um lado, o representante da Santa Sé na ONU, em dezembro de 2008, apresentou a posição da Igreja sobre a proposta da "Declaração sobre os direitos humanos, orientação sexual e identidade de gênero", com as seguintes afirmações:

Em particular, as categorias "orientação sexual" e "identidade de gênero", usadas no texto, não encontram reconhecimento, nem clara e partilhada definição no direito internacional. Se elas tivessem que ser tomadas em consideração na proclamação e na tradução prática dos direitos fundamentais, seriam causa de uma grave incerteza jurídica, como também viriam a minar a habilidade dos Estados para aderir e pôr em prática convenções e padrões novos e já existentes sobre os direitos humanos.

Até aqui, a argumentação da UJURCAT-RJ está dentro do padrão. Será mesmo que existe um "padrão" no discurso oficial da Igreja? Em um outro documento que só aparentemente não tem nada a ver com as declarações do representante da Santa Sé na ONU, encontramos a mesma expressão "orientação sexual", porém, sem qualquer contestação da mesma:

Na avaliação da possibilidade em viver, na fidelidade e alegria, o carisma do celibato, como um dom total da própria vida à imagem de Cristo, Cabeça e Pastor da Igreja, tenha-se presente que não basta certificar-se da capacidade de abstinência do exercício da genitalidade, mas é necessário igualmente avaliar a orientação sexual segundo as indicações promulgadas por esta Congregação. [Congregação para Educação Católica, Orientações para a utilização das competências psicológicas na admissão e na formação dos candidatos ao sacerdócio; n. 8; Vaticano, 2008].

O texto indica mais um documento: "Instrução sobre os critérios de discernimento vocacional acerca das pessoas com tendências homossexuais e da sua admissão ao seminário e às ordens sacras". Aqui, de fato, não encontramos a controversa expressão "orientação sexual", porque o texto insiste em repetir a fórmula "tendências homossexuais profundamente radicadas", além de introduzir a teoria sobre as "tendências homossexuais que sejam apenas expressão de um problema transitório como, por exemplo, o de uma adolescência ainda não completa" e que "devem ser claramente superadas, pelo menos três anos antes da Ordenação Diaconal" [n. 2].

Em mais um documento, "Carta aos bispos da Igreja Católica sobre o atendimento pastoral das pessoas homossexuais", a Igreja tenta explicar a sua postura em relação à expressão "orientação sexual":

A pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus, não pode definir-se cabalmente por uma simples e redutiva referência à sua orientação sexual. Toda e qualquer pessoa que vive sobre a face da terra conhece problemas e dificuldades pessoais, mas possui também oportunidades de crescimento, recursos, talentos e dons próprios. A Igreja oferece ao [talvez "no" - obs. minha] atendimento da pessoas humana aquele contexto de que hoje se sente exigência extrema, e o faz exatamente quando se recusa a considerar a pessoa meramente como um "heterossexual" ou um "homossexual", sublinhando que todos têm uma mesma identidade fundamental: ser criatura e, pela graça, filho de Deus, herdeiro da vida eterna. [n. 16] 

A mesma instituição (a Igreja católica), ainda que em um tom de crítica, não hesita ao usar a mesma expressão "orientação sexual". Em uma nota sobre o livro de Pe. André Guindon, "The sexual creators. An ethical proposal for concerned christians" (1986), a Santa Sé diz:

Parece que ele [Pe. André Guindon] não reconhece muita liberdade às pessoas homossexuais, em relação com a orientação sexual das mesmas, nem a possibilidade de abstinência sexual. (...) A possibilidade de uma pessoa homossexual mudar para uma orientação heterossexual, mediante a psicoterapia [sic!], é ridicularizada e rejeitada

Existe, portanto, algo chamado "orientação sexual"? Uma coisa semelhante afirmou o Beato João Paulo II, ainda no início de seu pontificado, quando elogiou os bispos norte-americanos por terem escrito uma carta ao Povo de Deus:

Como homens que têm palavras de verdade e o poder de Deus (2  Cor 6, 7), como autênticos mestres da lei de Deus e pastores compadecidos, afirmastes também com justiça: "O comportamento homossexual... enquanto coisa distinta da orientação sexual, é moralmente desonesto". Na clareza [sic!] desta verdade, exemplificastes a caridade efetiva de Cristo: não traístes aqueles que, por causa da homossexualidade, se encontram perante problemas mais difíceis, como aconteceria se, em nome da compreensão e da compaixão, ou por qualquer outro motivo, tivésseis despertado uma falsa esperança a qualquer irmão ou irmã.

Percebe-se, então, que o termo "orientação sexual" tem conquistado o espaço na linguagem e no entendimento da Igreja, assim como (ou, ainda mais) na cultura da sociedade em geral. Notamos, ao mesmo tempo, uma constante tentativa de fuga desse assunto por parte da Igreja, enquanto instituição. As agremiações do tipo da UJURCAT, citada acima, podem contribuir melhor para a compreensão mais ampla de uma realidade que talvez nunca tenha a sua definição completa e absoluta, mas nem por isso deixa de fazer parte vital da nossa existência e da nossa convivência. Além disso, o termo "orientação" é muito mais correto do que a palavra "opção" que continua circulando por aí e ainda causa bastante confusão. Não canso de dizer que o fato de ser um homossexual não é a minha opção. Talvez seja a orientação e, sem dúvida, é a minha identidade.

16 de março de 2014

A pobreza multifocal


Confesso que nunca gostei da ideia de associar a Campanha da Fraternidade à Quaresma. A reflexão sobre os mais graves problemas sociais é, sem dúvida, muitíssimo importante, porém, a Quaresma em si, já traz tanto conteúdo que acrescentar mais um (por mais que se tente estabelecer analogias), só pode trazer prejuízo. É como acrescentar a água no feijão. A panela fica mais cheia, mas o sabor se perde, fica diluído. Ou, então, tendo no armário uma prateleira cheia e outra pela metade, mesmo assim, insistir em enfiar mais coisas, justamente naquela que está cheia. Será que não faria mais sentido, por exemplo, inaugurar a Campanha da Fraternidade naquele espaço entre o Natal e as Cinzas, prosseguindo, depois, ao longo do tempo comum? Do jeito como está, nem a Quaresma, nem a Campanha, conseguem penetrar suficientemente o coração do povo. Será que a superficialidade é proposital? Enfim... foi apenas um pequeno desabafo, à margem do tema principal. 

O Papa Francisco propõe uma reflexão para a Quaresma deste ano. É sobre Jesus que se fez pobre, para nos enriquecer com a sua pobreza (cf. 2 Cor 8, 9). Vale a pena ler a sua mensagem. Ciente da confusão cultural e linguística, o Papa procura explicar o verdadeiro sentido da pobreza, enquanto uma virtude. Nada de "coitadismo" e nada de limitação da pobreza à dimensão apenas material. Francisco fala, entre outras coisas, de pobreza moral e espiritual (além da material) e destaca a miséria como um grito dos sofredores que devemos ouvir e atender. A pobreza, em sua dimensão evangélica, é essencialmente uma vocação de cada cristão, chamado a imitar o Mestre Jesus que, através do despojamento por amor, redimiu a humanidade. Diz o Papa:

A finalidade de Jesus se fazer pobre não foi a pobreza em si mesma, mas - como diz São Paulo - "para vos enriquecer com a sua pobreza". Não se trata de um jogo de palavras, de uma frase sensacional. Pelo contrário, é uma síntese da lógica de Deus: a lógica do amor, a lógica da Encarnação e da Cruz. Deus não fez cair do alto a salvação sobre nós, como a esmola de quem dá parte do próprio supérfluo com piedade filantrópica. Não é assim o amor de Cristo! (...) Em que consiste então esta pobreza com a qual Jesus nos liberta e torna ricos? É precisamente o seu modo de nos amar, o seu aproximar-se de nós como fez o Bom Samaritano com o homem abandonado meio morto na berma da estrada (cf. Lc 10, 25-37). Aquilo que nos dá verdadeira liberdade, verdadeira salvação e verdadeira felicidade é o seu amor de compaixão, de ternura e de partilha.

A lógica de Deus, da qual fala o Papa, é a lógica do amor. Quem já amou, sabe disso. De quantas coisas somos capazes de abrir mão, só para manifestar o nosso amor por aquela pessoa especial. E fazemos isso sem amargura. Pelo contrário, ficamos felizes (ricos em felicidade), ao ver a pessoa amada feliz. E isso acontece tanto entre as pessoas heterossexuais, quanto homossexuais. A experiência do amor não depende da orientação (identidade) sexual e não se limita com ela. Neste ponto tenho mais uma observação...

Muitos cristãos (talvez a sua maioria) associam as pessoas homossexuais ao pecado, à promiscuidade, à depravação... enfim, mandam-nos logo para o inferno. Até no mesmo texto da mensagem do Papa identificam-nos imediatamente com a "miséria moral". O Santo Padre diz: "a miséria moral (...) consiste em tornar-se escravo do vício e do pecado. (...) Esta forma de miséria (...) anda sempre associada com a miséria espiritual, que nos atinge quando nos afastamos de Deus e recusamos o seu amor. Se julgamos não ter necessidade de Deus, que em Cristo nos dá a mão, porque nos consideramos auto-suficientes, vamos a caminho da falência.

Ora, ser homossexual não equivale ao ser escravo do vício e do pecado. As crianças de 7-8 anos aprendem na catequese que o pecado é algo voluntário (além de consciente e contrário à vontade de Deus). Eu não sou gay porque quero ser gay. A homossexualidade nunca foi uma opção, apesar de tantos insistirem em usar tal termo. E tem mais: ser gay não significa necessariamente recusar o amor de Deus e considerar-se auto-suficiente a ponto de julgar não necessitar de Deus. Muito pelo contrário. Por isso acrescento à lista de misérias, proposta pelo Papa, a miséria intelectual de todos aqueles que, em nome de Jesus (ou por outra razão), rotulam as pessoas homossexuais (e as demais da diversidade LGBT) de "pobres pecadores" e tentam sentar-se no trono de Deus, o único Justo Juiz, prevendo para nós a condenação eterna e a exclusão social e eclesial até a morte (ou até o momento em que decidirmos abandonar a homossexualidade e abraçar a única forma "legítima" de sentir e de amar, isto é, a heterossexualidade).

4 de março de 2014

O prelúdio do Sínodo


O recente consistório (a reunião dos cardeais com o Papa) não faz parte do Sínodo dos Bispos, mesmo assim, ganhou o "sobrenome" de "Consistório da Família" e, com razão, a sua leitura está sendo feita, justamente, no contexto do Sínodo (previsto para o próximo mês de outubro). O portal ihu.unisinos traz o longo texto do discurso, feito durante o consistório pelo cardeal Walter Kasper a pedido do Papa Francisco e o comentário inicial da redação traz a expressão "ouverture", fazendo alusão à introdução a uma peça musical (assim mesmo como o título desta reflexão). Ainda dentro dessa analogia, posso dizer que a palestra do cardeal Kasper é uma "ópera" ou talvez "sinfonia" em favor da família e de sua forma bíblico-tradicional. Sim, temos algumas novidades, quase dissonâncias, quando se trata de propostas relacionadas à admissão de (algumas) pessoas divorciadas e recasadas aos sacramentos. De acordo com outro cardeal alemão, Reinhard Marx, o discurso de Kasper despertou fortes oposições por parte de muitos participantes do consistório.

O texto é longo e requer (e, eu acho, merece) uma atenção redobrada. O meu contexto de leitura é a perspectiva LGBT e, por este ângulo, algumas afirmações destacam-se de maneira especial:

"A instituição da família é, embora com todas as diferenças particulares, a ordem original da cultura da humanidade. Não pode ter um bom sucesso estabelecer hoje uma nova definição da família, que contradiga ou mude a tradição cultural de toda a história da humanidade".

"Não nos tornamos homem ou mulher através da respectiva cultura, como afirmam algumas opiniões recentes. O ser homem e o ser mulher estão fundamentados ontologicamente na criação. A igual dignidade da sua diversidade explica a atração entre os dois, cantada nos mitos e nos grandes poemas da humanidade, assim como no Cântico dos Cânticos do Antigo Testamento. Querer torná-los iguais por ideologia destrói o amor erótico. A Bíblia entende esse amor como união para se tornar uma só carne, isto é, como uma comunidade de vida, que inclui sexo, eros, além da amizade humana ([Gn] 2, 14). Nesse sentido completo, o homem e a mulher foram criados pelo amor e são imagem de Deus, que é amor (1 J0 4, 8)".

Enquanto todas as esperanças (de uma percepção nova do amor entre as pessoas do mesmo sexo) parecem mortas e sepultadas, brotam no mesmo texto - a meu ver - alguns modestos sinais positivos, ainda que de forma indireta. O primeiro deles é a antiga e clássica relação entre o matrimônio e o celibato. O cardeal Kasper lembra:

"Como o celibato livremente escolhido se torna uma situação sociologicamente reconhecida em si mesma, o matrimônio também, por causa dessa alternativa, não é mais uma obrigação social, mas sim uma livre escolha. Sobretudo as mulheres não casadas são agora reconhecidas mesmo sem um marido. Assim, o matrimônio e o celibato se valorizam e se sustentam mutuamente, ou ambos juntos entram em uma crise, como infelizmente estamos experimentando agora".

Por analogia, podemos dizer que o casamento entre as pessoas do mesmo sexo que também já se tornou uma situação sociologicamente reconhecida em si mesma, faz com que a união matrimonial entre um homem e uma mulher, por causa dessa alternativa, não é mais uma obrigação social. Assim, o casamento heterossexual e a união homoafetiva se valorizam e se sustentam mutuamente. A visão do casamento igualitário como uma ameaça, ou um atentado contra a família tradicional, não tem mais razões para existir.

O outro sinal de esperança, pequeno e indireto, vem da abordagem de uma das situações, tradicionalmente tidas como irregulares, agora, porém, apresentada em uma ótica diferente. É a questão daqueles que, tendo o seu primeiro matrimônio sacramental desfeito, estão vivendo a "segunda união", baseada no contrato civil. Em primeiro lugar, o palestrante refere-se, de maneira mais generalizada, às "famílias desagregadas" e diz:

"Não basta considerar o problema só do ponto de vista e da perspectiva da Igreja como instituição sacramental; precisamos de uma mudança de paradigma e devemos - como fez o bom samaritano (Lc 10, 29-37) - considerar a situação a partir da perspectiva de quem sofre e pede ajuda".

Depois de recordar as antigas e clássicas tentativas de encontrar a solução, principalmente a avaliação das possibilidades de constatar a eventual nulidade do casamento religioso (e, consequentemente, promover a "santificação" da união existente), o cardeal Kasper lança uma nova proposta que diz respeito aos casais que não têm essa possibilidade, ou seja, àqueles que continuam sendo considerados "irregulares". Eu entro aqui, com a observação de que o meu casamento (caso exista um candidato que se aventure para tal façanha) também seria considerado irregular perante a Igreja (pois seria com um homem!) e sem chance de ser elevado ao nível do Sacramento do Matrimônio. Segundo os critérios propostos pelo cardeal, porém, nós dois, tendo cumprido certas condições, seríamos admitidos à Comunhão Eucarística, a não ser que a minha lógica esteja falhando.

Antes de chegar aos pontos concretos, o cardeal Kasper polemizou com a ideia (sustentada, inclusive, pelo Papa Bento XVI) sobre a "comunhão espiritual" que - unicamente - seria acessível aos casais "irregulares":

"De fato, quem recebe a comunhão espiritual é uma coisa só com Jesus Cristo; como pode, então, estar em contradição com o mandamento de Cristo? Por que, portanto, não pode receber também a comunhão sacramental? Se excluímos os cristãos divorciados em segunda união que estão dispostos a se aproximar deles [sacramentos] e os encaminhamos à vida de salvação extrassacramental [sic!], talvez não colocamos em discussão a estrutura fundamental sacramental da Igreja? Então, de que servem a Igreja e os sacramentos? Não pagamos um preço alto demais com essa resposta? Alguns defendem que justamente a não participação na comunhão é um sinal da sacralidade do sacramento. A pergunta que se coloca em resposta é: não seria talvez uma instrumentalização da pessoa que sofre e pede ajuda se fazemos dela um sinal e uma advertência para os outros? Deixamo-la sacramentalmente morrer de fome para que os outros vivam?".

Após essa premissa dramática, o palestrante passou para os pormenores da proposta:

"Um divorciado em segunda união:
1) se se arrepende do seu fracasso no primeiro matrimônio;
2) se esclareceu as obrigações do primeiro matrimônio, se definitivamente excluiu que volte atrás;
3) se não pode abandonar sem outras culpas os compromissos assumidos com o novo matrimônio civil;
4) se, porém, se esforça para viver no melhor das suas possibilidades o segundo matrimônio a partir da fé e para educar os próprios filhos na fé;
5) se tem o desejo dos sacramentos como fonte de força na sua situação,
- devemos ou podemos negar-lhe, depois de um tempo de nova orientação (metanoia), o sacramento da penitência e depois da comunhão?"

Entro aqui, de novo, com as minhas analogias:

Uma pessoa homossexual:
1) se se arrepende do seu fracasso nas tentativas de estabelecer uma união heterossexual, ou até mesmo se arrepende por ser homossexual, ou seja, admite o fato de que tal condição não depende de sua vontade livre (tipo: "ah, como seria mais fácil, eu ser uma pessoa heterossexual, mas, infelizmente, isso não depende de mim");
2) se esclareceu as obrigações do casamento com uma pessoa do sexo oposto e se excluiu definitivamente a possibilidade de tal casamento;
3) se não pode abandonar sem outras culpas os compromissos assumidos com a união homoafetiva;
4) se, porém, se esforça para viver no melhor das suas possibilidades a união homoafetiva a partir da fé e para educar na fé os filhos que adotou;
5) se tem o desejo dos sacramentos como fonte de força na sua situação,
- a Igreja deve ou pode negar-lhe, depois de um tempo de nova orientação (metanoia), o sacramento da penitência e depois da comunhão?

O cardeal parece ler os meus devaneios e logo acrescenta uma misteriosa advertência:

"Um casamento civil como descrito com critérios claros deve ser diferenciado de outras formas de convivência 'irregular' como os casamentos clandestinos, os casais de fato, sobretudo a fornicação e os chamados casamentos selvagens [sic!]. A vida não é só branco e preto; de fato, há muitas nuances". Bem, fiquei na dúvida: onde é que eu me encaixo?

Enfim, uma das considerações finais feita pelo cardeal Kasper, vejo também como um pequeno e indireto sinal positivo:

"Não podemos limitar o debate à situação dos divorciados em segunda união e a muitas outras situações pastorais difíceis que não foram mencionadas no presente contexto. Devemos tomar um ponto de partida positivo e redescobrir e anunciar o Evangelho da família em toda a sua beleza. A verdade convence mediante a sua beleza. Devemos contribuir, com as palavras e os fatos, para fazer com que as pessoas encontrem a felicidade na família e, de tal modo, possam dar às outras famílias testemunho dessa sua alegria. Devemos entender novamente a família como Igreja doméstica, torná-la a via privilegiada da nova evangelização e da renovação da Igreja, uma Igreja que está a caminho junto às pessoas e com as pessoas".

Só espero que a Igreja esteja, também, a caminho junto às pessoas homossexuais...

1 de março de 2014

Meu carnaval permanente


Os dias de carnaval, pelo menos aqui, no Brasil, criam uma sensação de estarmos em algum tipo de universo paralelo. As leis, os costumes e... os problemas, em sua maioria, ficam suspensos. Nada mais é estranho, ou melhor, o mais estranho é normal. É fácil despir-se de pudores para se revestir de fantasias. É a fantasia que reina e ninguém quer saber quem é quem. Não importa. É o teatro popular, um fenômeno vivido pela humanidade desde as suas origens, com a edição talvez mais clássica, lá na Grécia antiga. A hipocrisia perde a sua conotação pejorativa, retornando aos primórdios em que colocar uma máscara era apenas a nobreza da arte, ou seja, era uma mentira autorizada e consagrada. Por aqui, depois de alguns dias, irão sobrar as toneladas de lixo, as fantasias serão guardadas para o ano que vem e a vida, aos poucos, voltará à seriedade de sempre. As pessoas voltarão a mostrar as suas caras e as suas identidades...

O meu carnaval, entretanto, não termina na quarta-feira de cinzas. Eu continuarei usando a minha fantasia. É uma máscara do homem politicamente correto, talvez um pouquinho rebelde, tipo pirracento, mesmo assim, gentil e educado, bom (ou, pelo menos, médio) cristão, um cara que se veste sem extravagância, um tanto caladão, tímido, rotineiro, previsível. E, principalmente, um sujeito assexuado, supostamente heterossexual, por ser mais óbvio e porque ninguém toca nesse assunto. Até mesmo por não ter motivo para tocar. Sim, a minha fantasia de um carnaval permanente, pode ser chamada de... armário. 

Bem, falando com sinceridade, eu já tirei a minha fantasia. Foi diante de algumas pessoas e entre elas, umas quatro, que me viram não somente sem a fantasia, mas também sem a roupa (e não estou falando de médicos). Algumas outras pessoas conseguiram enxergar através da minha fantasia e, de alguma maneira, descobriram que sou gay. Mas também não tocamos muito nesse assunto. Tipo: "sabe-se, mas não se fala".

Sinceramente, não sei até quando vou viver este carnaval. Algumas vezes já tive vontade de "chutar o pau da barraca". Outras vezes fiz ou falei coisas para provocar, mas foi como brincar com a própria máscara, fingindo querer tirá-la. E não tirei e ninguém conseguiu arrancá-la de mim.

Mas o carnaval é uma ótima oportunidade para esse tipo de reflexão.

25 de fevereiro de 2014

O Papa e as famílias


A Santa Sé divulgou hoje, 25 de fevereiro, a Carta às Famílias, escrita pelo Papa Francisco. O texto, como tudo do Papa Francisco, é simples, objetivo e cheio de carinho. Eu leio a "Carta" com bastante esperança, lembrando de uma atenção nova e diferente da Igreja, voltada aos casais formados pelas pessoas do mesmo sexo. Talvez tenha chegado a hora de corrigir as afirmações anteriores, baseados nitidamente no medo perante o desconhecido que definiam como sendo abominável a "equiparação" das uniões homossexuais ao matrimônio e à família (escrevi sobre isso, p.ex. aqui). Como sabemos, o questionário, elaborado pelo Vaticano e enviado aos quatro cantos do mundo, aborda também o tema das uniões de pessoas do mesmo sexo, como um dos temas do próximo Sínodo dos Bispos. Falando, justamente do Sínodo, cujo tema será "Os desafios pastorais da família no contexto da evangelização", o Papa Francisco faz um pedido importante: "(...) unamo-nos todos em oração para que a Igreja realize (...) um verdadeiro caminho de discernimento e adote os meios pastorais adequados para ajudarem as famílias a enfrentar os desafios atuais com a luz e a força que provêm do Evangelho". No início da "Carta", o Papa coloca-se, literalmente, à porta da casa de cada família, para conversar. Não é difícil imaginar este homem, entrando no lar formado por dois homens ou duas mulheres, assim como à mais humilde casa de uma mãe solteira ou mesmo de um casal heterossexual que vive sem o vinculo sacramental do Matrimônio. O Papa diz a cada uma dessas famílias: "Efetivamente, hoje, a Igreja é chamada a anunciar o Evangelho, enfrentando também as novas urgências pastorais que dizem respeito à família". E acrescenta: "[Jesus] é a fonte inesgotável daquele amor que vence todo o isolamento, toda a solidão, toda a tristeza". No final ainda diz: "Queridas famílias, a vossa oração pelo Sínodo dos Bispos será o tesouro precioso que enriquecerá a Igreja".

Há quem diga que não faz bem criar as expectativas, afinal trata-se de um sínodo, isto é, de uma reunião de trabalho que reunirá muitos bispos do mundo inteiro e que, em sua grande maioria, não têm a mente tão aberta quanto o Papa. Por outro lado, como disse o cardeal alemão Walter Kasper, "a Igreja não é uma democracia (...), porque, no final, quem decide é o Papa". Temos ainda outros sinais de esperança. É o pronunciamento do Secretário do Sínodo dos Bispos, o cardeal Lorenzo Baldisseri que, entre outras coisas, disse: "As respostas [ao questionário enviado pela Santa Sé aos católicos do mundo inteiro] apresentam muito sofrimento, sobretudo da parte dos que se sentem excluídos ou abandonados pela Igreja, por se encontrarem num estado de vida que não corresponde à sua doutrina e à sua disciplina". O mesmo cardeal afirmou ainda que as respostas ao questionário que já chegaram ao Vaticano (em aproximadamente 80% do total esperado), sublinham "a urgência de tomar consciência das realidades vividas pelas pessoas, de retomar o diálogo pastoral com as pessoas que se afastaram, por várias razões". E acrescenta: "A figura do Papa Francisco comprova, dia após dia, uma nova abordagem humana e cristã que faz vibrar as pessoas, dispondo-as à escuta e ao acolhimento daquilo que é bom para elas, mesmo quando há sofrimento".

Finalizo a reflexão com as palavras do próprio Papa, pronunciadas no início do recente "Consistório sobre a família", no dia 20 de fevereiro. Podemos notar facilmente que tanto o otimismo exagerado, quanto o pessimismo desesperado, não deve nos acompanhar. Antes, o realismo...

Eu diria que são dois lados da mesma moeda...
De um lado: "Nestes dias, refletiremos especialmente sobre a família que é a célula fundamental da sociedade humana. Desde o início, o Criador colocou a sua bênção sobre o homem e a mulher, para que fossem fecundos e se multiplicassem sobre a terra; e assim a família torna presente, no mundo, como que o reflexo de Deus, Uno e Trino".
Do outro lado: "Procuraremos aprofundar a teologia da família e a pastoral que devemos implementar nas condições atuais. Façamo-lo com profundidade e sem cairmos na 'casuística', porque decairia, inevitavelmente, o nível do nosso trabalho. Hoje, a família é desprezada, é maltratada, pelo que nos é pedido para reconhecermos como é belo, verdadeiro e bom, formar uma família, ser família hoje; reconhecermos como isso é indispensável para a vida do mundo, para o futuro da humanidade".

Uganda


Dizer que a humanidade é uma grande família é repetir aquela linda teoria que não tem muito a ver com a realidade. No mesmo dia em que a presidente Dilma tinha afirmado que faz parte do bom senso não se meter nos negócios de outros países e que o que importa é que sejam reconhecidas as coquistas sociais na Venezuela (certamente, a vida que perderam os manifestantes, executados pelo regime do Maduro imaturo, não se enquadram nessas conquistas), um outro presidente, chamado Yoveri Museveni, lá em Uganda, disse: "Os estrangeiros não podem nos dar ordens. É nosso país. Eles devem nos apoiar, ou senão guardar sua ajuda. Eu aconselho aos amigos ocidentais que não façam deste assunto um problema, porque eles têm muito a perder". Será que ele se inspirou na "presidenta"? É claro, não podia faltar as referências religiosas. O deputado David Bahati, que promoveu a lei, considerou que esse "voto contra o demônio" é "uma vitória para a Uganda".

O primeiro pensamento que surgiu na minha mente foi: "Graças a Deus que eu não moro em Uganda"... O segundo (ainda no mesmo espírito mesquinho e egoísta) dizia: "Graças a Deus que Uganda não é uma potência, ou referência mundial, semelhante aos Estados Unidos". Mas, quando respirei um pouco e permiti que a notícia tocasse nas camadas um pouco mais nobres da minha humanidade, refleti: "Meu Deus! E os homossexuais de Uganda? Como agora será a vida deles?!"...

A lei prevê a sentença de prisão perpétua no caso de reincidência, criminaliza qualquer tipo de "promoção" da homossexualidade e obriga os cidadãos (certamente punindo qualquer desobediência nesse caso) a denunciarem qualquer pessoa que se identifique como homossexual. A pressão internacional obteve a correção do projeto original que incluía a pena da morte para quem fosse flagrado pela segunda vez realizando um ato homossexual. Como se sabe, porém, cada lei tem também uma dimensão educativa, portanto não serão muito surpreendentes os atos de "julgamento popular", com o direito ao linchamento dos acusados (se presenciamos isso no Brasil, imaginem em Uganda!)...

Só nos resta pedir a misericórdia de Deus e, com a mesma insistência, levantar a nossa voz em protesto, inclusive em campanhas de coleta de assinaturas e outras formas de apelos às autoridades do mundo todo. Ainda que tenhamos - como eu tive - os impulsos bastante mesquinhos e egoístas, tentemos pensar nos outros que, de fato, são nossos irmãos, apesar de morarem em um lugar tão distante e desconhecido.

PEÇA QUE OS LÍDERES DE UGANDA E DO MUNDO TODO PROTEJAM AS PESSOAS LGBT EM UGANDA. ASSINE A PETIÇÃO AQUI
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Obs. 1.: As informações obtive na página "Homorrealidade" e sobre a campanha de assinaturas, no facebook.
Obs. 2.: Achei curioso o fato de que, ao transmitir a mesma notícia nos telejornais da TV Globo, o apresentador William Bonner usou o termo "homossexualidade" e - mais tarde - outro apresentador, William Waack, a palavra "homossexualismo"...
Obs, 3.: Leia também, no Blog "Diversidade Católica", sobre o mesmo assunto: "O Núncio Apostólico em Uganda contra a nova lei anti-gay" e "A maré está virando contra a homofobia"

20 de fevereiro de 2014

Os namorados em Roma


Não sei se entre aqueles milhares de namorados (noivos), reunidos com o Papa na Praça de São Pedro no último dia 14 de fevereiro (em vários lugares celebrado como o Dia dos Namorados - "Valentine's-Day"), estava algum casal homoafetivo. Juro que eu estaria lá, caso tivesse um namorado e estivesse em Roma. Os textos principais deste encontro, a saber: Diálogo do Papa com os casais e a Oração dos namorados, não tinham nada a ver com a condenação de "formas alternativas do amor humano" (que poderíamos esperar na época de Bento XVI), mas trouxeram a serenidade e o júbilo de um relacionamento projetado para "até que a morte os separe". Evidentemente, havia referências diretas e indiretas ao relacionamento tradicional, consagrado e sacramentado, isto é, heterossexual. Não se ouviu, portanto, qualquer menção "revolucionária" ao namoro gay (também seria difícil esperar, eu acho). Porém, os casais homoafetivos, a meu ver, podem fazer um excelente proveito com essas reflexões. 

As pessoas homossexuais que acreditam em Cristo e - de alguma maneira - identificam-se com a Igreja (neste caso, católica), têm alguns desafios a mais, em comparação com outras pessoas, por exemplo, os heterossexuais, os ateus/agnósticos e os seguidores de outras doutrinas (não vou detalhar aqui as diferenças entre as religiões). Em primeiro lugar aparece o desafio, talvez maior entre todos, que consiste em reconciliar em si mesmo as duas dimensões da própria identidade, quer dizer, a homossexualidade e a fé. O caminho não é curto nem fácil, porém possível. Aliás, é necessário para quem não se vê capaz de abrir mão de nenhuma dessas dimensões. A maior parte do trabalho a ser feito resume-se em superação (redefinição) de conceitos, opiniões, pontos de vista que tentam (com muito sucesso, infelizmente) apresentar as duas coisas, justamente, como irreconciliáveis, tipo água-fogo, água-óleo etc. A superação dessa visão do inferno é libertadora e não é nenhuma blasfêmia ou heresia. É uma descoberta, é uma ressurreição. Depois dese primeiro (mais longo, mais profundo e mais importante) passo, vêm outros, como a recuperação da alegria de um relacionamento com Deus-Amor, o novo gosto pela oração e a repensada, criativa e não menos alegre leitura da Palavra de Deus. A partir desta perspectiva, fica possível e muito útil, tomar nas mãos o texto da pequena oração dos namorados, composta especialmente para o encontro com o Papa:

Deus Pai, fonte de amor,
abre nossos corações e nossas mentes
para reconhecer em Ti
a origem e a meta
do nosso caminho de namorados.

Sim, sim! Ele é a origem e a meta do caminho de namorados que se entregam um ao outro no amor, cheio de confiança, dedicação, carinho, diálogo e tantos outros atributos, capazes de elevar uma relação interpessoal bem acima de um mero desejo carnal que (não esquecido nem ignorado) é muito mais uma consequência do que o motivo e a finalidade máxima dos dois. Dois rapazes e duas moças que creem em Deus Pai, podem conseguir enxergar nele a fonte do amor que os/as une, por mais que o seu relacionamento tenha sido taxado de diabólico ou antinatural. 

Jesus Cristo, esposo amado,
ensina-nos a vida de fidelidade e do respeito,
mostra-nos a verdade de nossos sentimentos,
faz-nos disponíveis ao dom da vida.

Embora essa parte da oração faça alusão direta à procriação, podemos entender que a disponibilidade ao dom da vida vai muito além desse significado restrito. Quanto mais sou capaz de reconhecer a minha vida e a vida do meu amado como um dom de Deus, haverá mais firmeza, zelo, cuidado e respeito pelo próprio relacionamento. E, se Deus permitir, a mesma disponibilidade ao dom da vida, levará à experiência da vocação à paternidade (maternidade), ainda que por meio de uma adoção. Além disso, a visão da vida como o dom, será suficiente para encarar, com fé e aceitação, a chegada da morte...

Espírito Santo, fogo do amor,
acende em nós a paixão pelo Reino,
a valentia para assumir
decisões grandes e responsáveis,
a sabedoria da ternura e do perdão.

Sem dúvida, os homossexuais batizados podem contribuir para a construção do Reino de Deus. Podem e devem, afinal, este Reino é de amor, de acolhimento, de louvor ao Criador, de libertação dos cativos e de cura dos feridos. E nem precisa dizer de quanta valentia se exige das pessoas homossexuais que levam a sério a sua própria visibilidade e a decisão de compartilhar sua vida com alguém. Tampouco é necessário frisar a importância da sabedoria da ternura e do perdão em um relacionamento de pessoas do mesmo sexo, pois neste ponto não há diferença entre as sexualidades.

Deus, Trindade do Amor,
guia os nossos passos.
Amém.

As mesmas linhas de pensamento encontramos nas respostas do Papa aos representantes dos casais reunidos na Praça de São Pedro. As três perguntas perfeitamente dizem respeito às nossas inquietações:

1) Santidade, muitos, hoje, pensam que prometer fidelidade para toda a vida é um compromisso muito difícil. Muitos sentem que o desafio de viver juntos para sempre é bonito, fascinante, mas muito exigente, quase impossível. Pedimos que sua palavra possa nos iluminar sobre esse aspecto. 

Se os namorados (noivos) heterossexuais têm essa preocupação, imagine-se os homossexuais. Além da onipresente "cultura do descartável", da qual o Papa fala com frequência, acrescenta-se a pressão interna e externa, experimentada por todos "não-heterossexuais" que têm muito mais dificuldades em acreditar que "isso pode dar certo". O Papa dá dicas simples e concretas que, de novo, servem muitíssimo bem às pessoas do mesmo sexo que queiram levar a vida em comum (leia aqui). Em resumo, trata-se de uma construção, dia após dia e não apenas sobre a base de sentimentos. O Papa recomenda também a oração pelo relacionamento: "Senhor, dá-nos hoje, o nosso amor cotidiano".

2) Santidade, viver juntos todos os dias é belo, dá alegria, sustenta. Mas é um desafio a ser enfrentado. Acreditamos que devemos aprender a nos amar. Há um "estilo" de vida conjugal, uma espiritualidade do cotidiano que queremos aprender. O Senhor pode nos ajudar nisso, Santo Padre?

Aqui a resposta do Papa é ainda mais simples e bastante prática. É a capacidade de usar, conscientemente, os termos (ou melhor, as posturas): "Posso?", "Obrigado!" e "Desculpe!". Nada de invadir, com as "botas de montanha", a vida e a intimidade do outro. Nada de ingratidão, mas muita sensibilidade e reconhecimento. Finalmente, a sincera humildade em admitir os próprios erros e pedir o perdão por eles. Literalmente o Papa disse (entre outras coisas): "A gentileza preserva o amor"; 'É necessário saber dizer 'obrigado' para caminhar bem juntos"; "Jesus, que nos conhece bem, nos ensinou um segredo: nunca terminar um dia sem pedir perdão...".  

3) Santidade, nestes meses, estamos nos preparativos para o nosso casamento. O Senhor pode nos dar algum conselho para celebrar bem o nosso matrimônio?

Bem... No momento, esta é a questão que preocupa exclusivamente os casais heterossexuais, sobretudo no contexto do Sacramento do Matrimônio. Caberia aqui a pergunta sobre a celebração de uma bênção nupcial para os casais homoafetivos (enquanto o Sacramento está fora de qualquer cogitação). Mas, a resposta do Papa vai além e é, de fato, a continuação do tema de um "estilo de vida conjugal", mencionado anteriormente. O Papa Francisco disse (aqui vai a resposta inteira):

Façam de um modo que seja uma verdadeira festa, uma festa cristã, não uma festa social! A razão mais profunda da alegria desse dia nos indica o Evangelho de João: vocês se recordam do milagre nas bodas de Caná? Em um certo momento, o vinho faltou e a festa parecia arruinada. Por sugestão de Maria, naquele momento, Jesus se revela pela primeira vez e realiza um sinal: transforma a água em vinho e, assim, salva a festa de núpcias.
O que aconteceu em Caná há dois mil anos acontece, na realidade, em cada festa de núpcias: o que fará pleno e profundamente verdadeiro o matrimônio de vocês será a presença do Senhor que se revela e dá a sua graça. É a sua presença que oferece o “vinho bom”, é Ele o segredo da alegria plena, que realmente aquece o coração.
Ao mesmo tempo, no entanto, é bom que o matrimônio de vocês seja sóbrio e faça sobressair o que é realmente importante. Alguns estão mais preocupados com os sinais exteriores, com o banquete, fotografias, roupas e flores… São coisas importantes em uma festa, mas somente se forem capazes de apontar o verdadeiro motivo da alegria de vocês: a bênção do Senhor sobre o amor de vocês. Façam de modo que, como o vinho em Caná, os sinais exteriores da festa revelem a presença do Senhor e recorde a vocês e a todos os presentes a origem e o motivo de vossa alegria.